sábado, junho 06, 2015

Este país não é para músicos (II)

Somos dos poucos, talvez os únicos, que começamos a nossa formação ainda em crianças, quando nos dão a conhecer o maravilhoso mundo da música. Inebriados por essa paixão que se alimenta de cada nota que sai do nosso instrumento, continuamos esse percurso tantas vezes sinuoso, cheios da garra própria da juventude e dos sonhos que ela cultiva. Acreditamos que podemos mudar o mundo com a nossa música, porque afinal foi esse o efeito que ela teve nas nossas vidas. Não há horas de estudo que nos metam medo nem passagens difíceis que nos assustem. Estamos habituados a trabalhar no duro, a enfrentar o público desde tenra idade, a superar os medos, os nervos e a ansiedade com que muitos só se deparam já em adultos. Aceitamos isso porque faz parte da vida que escolhemos para o nosso futuro e não nos imaginamos a fazer outra coisa. Somos músicos desde que aprendemos as primeiras notas e haveremos de o ser até ao último suspiro. 
Mas a realidade não é cor de rosa. Saímos dos Conservatórios, cujas propinas foram, para grande parte de nós, pagas pelos nossos pais, e lançamo-nos na aventura de tirar um Curso Superior de Música. Esforçamo-nos para ter grandes notas, porque paira sobre nós o aviso sábio de que ser artista, neste país, não é tarefa fácil. E não é, de facto. Mas nem por isso baixamos os braços. Nem por isso deixamos de fazer da nossa arte o principal motivo para acordar todos os dias. Nem por isso deixamos os instrumentos no estojo e nos rendemos ao silêncio angustiante de um mundo sem música. Em vez disso, pisamos o palco mesmo quando o cachet não reflete nem um décimo do esforço que tivemos para ali estar. Ouvimos com um sorriso as maiores barbaridades sobre a vida que escolhemos, desde o clássico "mas qual é a sua profissão a sério?" ao mais moderno, e típico de períodos de crise,  "já tem muita sorte em poder tocar aqui". Abraçamos aquelas crianças que, como nós em tempos idos, vêm todas as semanas, religiosamente, aprender aquilo que temos para lhes ensinar. Vemo-los crescer e tornarem-se nos homens e mulheres que hão-de formar a geração do futuro, que justamente teve o direito de crescer com uma formação artística completa, que não olha à sua condição sócio-económica nem despreza aqueles que não têm a sorte de viver junto dos seis conservatórios públicos que existem neste país. Damos-lhe o melhor que temos e sabemos fazer, lapidando o diamante em bruto que cada um carrega dentro de si. Porque todos são crianças, todos são seres humanos cujos talentos não devem, nem podem, ficar por explorar. E este era, afinal, um dos grandes objetivos traçados no Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o séc. XXI.
Mas é também em pleno séc. XXI que se começa a assistir a um retrocesso brutal do ensino da música, que caminha a passos largos para se direcionar em exclusivo para uma elite. Paulatinamente, voltamos ao tempo em que só aqueles que têm capacidade económica para financiar os seus estudos têm acesso a uma formação musical digna da sua condição humana. Voltamos ao tempo em que aqueles que residem longe dos conservatórios estatais ficam privados de aprender um instrumento de forma gratuita. Voltamos ao tempo em que muitas crianças e jovens são forçados a abandonar o sonho de aprender música porque nem tiveram a oportunidade de o começar. O ensino da música está prestes a ser novamente relegado para segundo plano, apesar dos inúmeros estudos científicos que demonstram não só os seus benefícios, como a importância que este assume no desenvolvimento neurológico, social, afetivo e emocional do ser humano. Mas se áreas há em que esses estudos e pareceres, tantas vezes pagos a preço de ouro, são tidos em consideração pelos órgãos de soberania, o mesmo não acontece com a educação. Tudo parece ficar esquecido, em nome de uma consolidação orçamental que não olha ao futuro nem às pessoas que farão parte dele, mas apenas aos números que compõem os documentos elaborados dentro das quatro paredes dos gabinetes ministeriais. E é caso para perguntar se não será isto uma clara violação do Princípio da Igualdade, por não dar a todos, sem exceção, as mesmas condições para desenvolverem as suas competências artísticas, antes criando barreiras intransponíveis que se traduzirão numa formação deficitária e profundamente injusta face àqueles que, por razões económicas ou estritamente geográficas, não foram desprezados por estas políticas educativas. 
Já pouco me importa que obriguem os professores, com os seus salários miseráveis, a tirarem (e pagarem) mestrados profissionalizantes sob pena de serem despedidos. Já pouco me importa que seja aprovado um Contrato Coletivo de Trabalho que mais não traduz que uma forma moderna de exploração profissional. Já pouco ou nada me revolta que sejamos olhados como meros instrumentos de entretenimento, cuja performance a custo zero deixou de ser uma exceção para se transformar numa regra. Mas importa-me, e muito, que o futuro destas crianças e jovens seja comprometido desta forma e que aqueles que alimentavam a legítima expectativa de prosseguir os seus estudos de música se vejam forçados a desistir, privados da liberdade de poder escolher o seu futuro.
Qual velho do Restelo, tenho forçosamente que admitir que o dia em que se fará ouvir o silêncio dos instrumentos fechados no estojo já esteve mais longe, mesmo que isso implique que este mundo se torne incrivelmente pior. Mas, como acima disse, não há passagens difíceis que nos assustem. Cá estaremos para cantar em uníssono que a música não é um luxo. Porque a voz, essa, ninguém nos tira.

quinta-feira, maio 21, 2015

Sobre saber dizer não

Tenho-me apercebido nos últimos tempos que o meu nível de paciência para coisas que me fazem perder tempo é cada vez mais diminuto. Se antigamente ainda havia em mim uma réstia de resignação perante a inevitabilidade desses momentos, tal tem vindo a desaparecer de forma acentuada, sem um período intermédio que me permita uma gradual adaptação a essa nova realidade. Não sei se é fruto da idade (que a ninguém poupa) ou de um simples cansaço extremo, mas sei que cada vez mais me apetece dizer não àquilo que, de forma ridícula, me suga as energias e um dos bens mais preciosos que tenho: tempo. E será isto errado? Dizer não só porque sim? Não creio. Aliás, quanto mais reflito sobre este assunto, mais certa fico que não só não é errado dizer não, como é fundamental.
Dizer um não redondo, com todas as letras, tem um efeito bastante libertador, quase terapêutico, na medida em que nos desamarra daqueles filtros que vamos ganhando ao longo da vida, daquelas pseudo-cortesias que, no fundo, apenas servem (na maioria das vezes) para nos desviar do nosso caminho. Se limpamos as nossas casas e deitamos fora todo o lixo que nelas existe, porque não havemos de fazer o mesmo com as nossas vidas? Porque não haveremos nós de decidir o que é lixo e deitá-lo fora sem qualquer tipo de  constrangimento? Não sou minimalista, mas tenho que admitir que a tralha que carregamos connosco é muitas vezes um fardo demasiado pesado, que nos impede de dar passos mais largos em busca daquilo que são os nossos verdadeiros interesses, em busca de uma vida verdadeiramente livre. São essas pequenas amarras, uma aqui, outra ali, que nos fazem chegar ao fim do dia exaustos e frustados, com a sensação de que não evoluímos em nada e que perdemos mais um dia das nossas vidas. Assim, de forma inútil e despropositada. São esses filtros, corolários de uma vida em sociedade, que nos vão roubando valiosos minutos de vida e cuja soma pode ser incrivelmente assustadora. Porque uma coisa é perder tempo, outra coisa é gastá-lo de uma forma inteligente e proveitosa. 
Mas desengane-se quem pensa que só os outros nos roubam tempo e energia, porque, na verdade, somos nós os principais causadores desse desperdício. Somos nós quem, na grande maioria das vezes, não sabemos dizer não às múltiplas solicitações de que somos alvo; somos nós que, sob inúmeros pretextos, vamos inventando desculpas para tornar algo completamente acessório em algo indispensável; somos nós quem não resiste a espreitar as redes sociais, permitindo que os dois ou três minutos que dizemos sempre que vamos perder com isso, se transformem em dez, ou vinte, ou trinta...
A escassez de tempo é uma realidade e contra ela nada podemos. Mas podemos, sim, saber onde e com o quê o queremos despender. Por isso, quando me apetecer dizer não, vou dizê-lo. Pode parecer mal, mas faz-me bem.
 

terça-feira, abril 07, 2015

Sobre a corrida (e a vida)



Há uns anos, quando li o livro "Auto-retrato do escritor enquanto corredor de fundo", de Murakami, identifiquei-me imenso com o que ele referia sobre o facto de a corrida ser um momento de meditação, em que tudo pára e nos encontramos connosco, frente a frente e sem dispersões. Este é, sem dúvida, um dos grandes motivos pelos quais adoro correr... Por, nesses quilómetros, pensar em tudo o que tenho na vida, o que quero fazer, o que gostaria de fazer e como o irei fazer. Por, através disso, aprender algo que julgo fundamental para o nosso dia-a-dia: a focar-me no objetivo. Mesmo que as pernas doam e comecem a falhar ou que o corpo nos diga que é hora de desistir, o objetivo que temos é aquilo que nos move e nos faz lutar contra esse sofrimento físico. É o combustível que nos alimenta e ao qual vamos buscar a energia que nunca pensámos, sequer, ter. Não é o corpo que manda, mas sim a mente, e apercebemo-nos que ela é a força mais poderosa que temos e à qual nem sempre damos ouvidos. Damos por nós a lutar contra o nosso corpo, numa querela onde a mente sai, quase sempre, vitoriosa, provando a sua indiscutível  supremacia. E isto faz-me pensar que tudo na vida se pode comparar a uma corrida ou, dito de outra maneira, que a corrida é uma analogia da vida. 
Somos peritos em arranjar desculpas, mil e um argumentos laboriosamente detalhados e complexos, apenas e só com o objetivo de nos convencermos (ou convencermos a nossa mente) de que não somos os culpados por não fazermos aquelas coisas que realmente gostaríamos. Aquelas que, e ainda que loucas ou quiçá megalómanas,  guardamos como sonhos envoltos na esperança da concretização. É a falta de tempo (esse argumento fantástico da sociedade moderna), os compromissos profissionais, a família, a casa (e tantos outros que não vale a pena detalhar), que se afiguram como perfeitos álibis para a cómoda procrastinação em que assenta a nossa vida. Os sonhos ficam guardados em gavetas até ao dia em que, já bolorentos, as decidimos abrir e constatamos (não sem mágoa, é certo!) que já somos velhos demais para lhes limpar o bolor e o cheiro a naftalina. O tempo, cruel e impiedoso, continua a passar. Não espera pelo fim de semana ou férias (nos quais achamos que teremos mais tempo), nem tão pouco pela reforma que cada vez se avista mais longe.
Por isso, talvez esteja na hora de olhar para a vida como olhamos para uma corrida; nós somos o nosso próprio treinador e não há nada que nos possa fazer parar. Conhecer os nossos sonhos e saber quais os nossos objetivos é meio caminho para os concretizar. E com isso vem o grande segredo do sucesso: a motivação intrínseca, a vontade que vem de dentro de nós próprios e à qual vamos buscar energia, mesmo quando tudo parece correr mal ou todos dizem que não conseguiremos. Não há nada que deite abaixo uma mente convicta do que quer, simplesmente porque um espírito lutador e perseverante é sempre vencedor. E é por tudo isto que acredito cada vez mais que tudo o que precisamos está dentro de nós. Basta parar, procurar, organizar, definir e, o mais importante, deitar as mãos à obra.
Se dá trabalho? Dá. Mas não haja dúvida que cortar a meta é das melhores sensações que há. Não importa se o fazemos com um mau tempo, com dores em todo o corpo ou com bolhas nos pés. Importa, sim, que conseguimos lá chegar. E que da próxima vez será ainda melhor.
 
[Para que conste, eu ainda tenho muito que correr...]

sábado, março 15, 2014

Sobre o optimismo

Para alguns a vida é difícil. Para outros, apenas um desafio. Ou uma sucessão deles. Para mim, uma constante aprendizagem. Um montar e desmontar de peças que se podem encaixar de várias formas. Mas apenas nalguns sítios. Porque no fim, tudo tem que bater certo por mais voltas que dêmos, por mais desencontros que hajam. E talvez seja por isto que erramos. Para saber que essa peça não pertencia a esse lugar. Para que possamos saber, aprendendo, onde a devemos colocar. No fundo, não são erros. São enganos. Que se limitam a servir de meios para que possamos decidir o rumo que queremos tomar. Por isso, não há como não ser optimista.

sexta-feira, março 07, 2014

Awakening



O toque do despertador quebrou o silêncio da noite. Ela mexeu-se e lutou contra o som implacável que se ouvia. Impiedoso, esse objecto que desperta os humanos do fantástico mundo inconsciente do sonho. Mas ela raramente sonha e essa noite não foi excepção. Cedeu e levantou-se, assim, sem pensar. Porque nestas alturas, pensar é racionalizar a vontade do corpo e o corpo, esse, queria continuar ali. Lavou a cara e a água gelou-lhe os sentidos por breves segundos. O frio desperta mas retrai a vontade de acordar. Inibe a vontade de sair do sono. Fraquezas do ser humano.

Vestiu-se e tomou o pequeno-almoço. E pensou como era bom ouvir o silêncio do mundo que ainda dormia. Depois, sem pressas, saiu, deixando atrás de si um rasto perfumado pela maresia que, como a Sophia, lhe enchia metade da alma. E já no carro, pronta para seguir viagem, escolheu o primeiro som que queria ouvir nesse dia. Porque é preciso escolher bem a forma como começamos cada dia. Não podemos controlar as imagens, porque não temos o mundo à disposição e nele não há só imagens bonitas. Mas podemos controlar os sons que, muitas vezes, são simplesmente um eco de nós mesmos projectado no silêncio. E por isso é importante ouvir sons bonitos, para que nos sintamos, também, cheios dessa beleza. Será isto a música?, pensou.

E um novo dia começou. Para ela, agora,  com a Chegada dos Pássaros e a visão do Atlântico.

quinta-feira, março 06, 2014

Oh, So simple.

Muitas vezes complicamos tudo só porque sim. Porque não sabemos ser práticos, concisos, directos. Porque achamos que só complicando conseguimos encontrar o verdadeiro caminho para o que queremos encontrar. Porque estamos habituados a ver, a ter e a querer demasiadas coisas. Porque nem nos damos conta que o que realmente nos completa está à nossa frente, muitas vezes a um simples passo. E esse passo, embora curto, pode ser grande. Para nós, para os que nos rodeiam, para o mundo.

Por isso, tenho cada vez mais a certeza que para ser feliz não é preciso complicar, não é preciso pensar muito. É preciso, sim, encontrar a coragem para aprender a [dis]pensar e seguir a intuição que nasce connosco. E dar esse passo. Porque somos o que queremos e não o que querem fazer de nós. E para isso não é preciso pensar muito. Apenas pensar bem.


terça-feira, fevereiro 11, 2014

solidão

O espelho do quarto, já gasto pelo uso, reflectia a sua imagem. O quarto cheirava a mofo, uma espécie de humidade entranhada que teimava em não desaparecer mesmo com a brisa que corria pela janela. Lá fora o dia sorria, o sol iluminava os campos que rodeavam a casa e sem esforço se ouvia a agitação dos pássaros, atarefados com as suas composições melódicas que faziam lembrar flautins. Para ela, há muito que os dias deixaram de ser atarefados. A agitação que antes enchia a sua vida dera lugar a uma monotonia insuportável. O ócio que antes parecia nunca ter, era agora o seu maior inimigo. E matava-a lentamente.
Não percebia o porquê de tudo ter passado tão rápido. Olhava para ontem como se ainda tudo estivesse igual e os seus olhos, de um azul cristalino embriagante, sufocavam com as lágrimas que os invadiam sem perguntar. Sempre fora uma lutadora, sempre dera a volta às situações mais difíceis, sempre estivera pronta para arregaçar as mangas e trabalhar na busca dos seus ideais. Mas agora via-se ali, em frente ao espelho, despida dessas forças que antes a moviam e tornavam incrivelmente poderosa. Já não tinha forças porque perdera os seus objectivos, ou, melhor dizendo, porque já tinha alcançado todos os seus objectivos. Sempre tinha achado que não precisava de mais nada nem de ninguém para além de si própria e sempre tinha agido dessa forma. Para alguns egoísta, para outros lutadora, mas para todos controversa. Mas agora via-se ali, sozinha, e isso doía-lhe de tal modo que já não suportava a ideia de continuar a viver. Não suportava a ideia de não ter com quem falar, de não ter com quem partilhar as ideias que lhe vinham à cabeça, de não ter ninguém que se preocupasse com ela, que lhe agarrasse nas mãos e dissesse apenas "está tudo bem". Os seus dias eram uma sucessão de horas vazias, com cheiro a café queimado preparado pela criada, a única pessoa que ainda a fazia lembrar que o ser humano existia. Mas não falava com ela, porque achava que já nem sabia falar. Porque os anos que passara fechada naquele quarto de estilo vitoriano, com cortinados verdes bolorentos, a tinham feito esquecer-se do que é falar e de como se fala. Estava sozinha mas sabia que a culpa era sua. Sabia que não tinha dado valor às poucas pessoas que a tinham amado, sabia que se tinha preocupado mais em preencher a sua vida com relações superficiais e efémeras, com a justificação de não precisar de mais nada e de não depender de ninguém. Compreendia, agora, que a vida que antes julgava cheia tinha sido, na realidade, completamente oca.
 
Deitou-se na cama e contemplou as suas mãos que, apesar das rugas, não denunciavam de forma alguma a sua idade, dando-se conta que nunca as utilizara para acariciar alguém. E foi com a companhia solene da solidão que adormeceu, assim, continuando a não perceber o porquê de tudo ter passado tão rápido.
Nesse dia, o café queimado da criada não foi servido porque, simplesmente, já não havia ninguém para o beber.