terça-feira, fevereiro 11, 2014

solidão

O espelho do quarto, já gasto pelo uso, reflectia a sua imagem. O quarto cheirava a mofo, uma espécie de humidade entranhada que teimava em não desaparecer mesmo com a brisa que corria pela janela. Lá fora o dia sorria, o sol iluminava os campos que rodeavam a casa e sem esforço se ouvia a agitação dos pássaros, atarefados com as suas composições melódicas que faziam lembrar flautins. Para ela, há muito que os dias deixaram de ser atarefados. A agitação que antes enchia a sua vida dera lugar a uma monotonia insuportável. O ócio que antes parecia nunca ter, era agora o seu maior inimigo. E matava-a lentamente.
Não percebia o porquê de tudo ter passado tão rápido. Olhava para ontem como se ainda tudo estivesse igual e os seus olhos, de um azul cristalino embriagante, sufocavam com as lágrimas que os invadiam sem perguntar. Sempre fora uma lutadora, sempre dera a volta às situações mais difíceis, sempre estivera pronta para arregaçar as mangas e trabalhar na busca dos seus ideais. Mas agora via-se ali, em frente ao espelho, despida dessas forças que antes a moviam e tornavam incrivelmente poderosa. Já não tinha forças porque perdera os seus objectivos, ou, melhor dizendo, porque já tinha alcançado todos os seus objectivos. Sempre tinha achado que não precisava de mais nada nem de ninguém para além de si própria e sempre tinha agido dessa forma. Para alguns egoísta, para outros lutadora, mas para todos controversa. Mas agora via-se ali, sozinha, e isso doía-lhe de tal modo que já não suportava a ideia de continuar a viver. Não suportava a ideia de não ter com quem falar, de não ter com quem partilhar as ideias que lhe vinham à cabeça, de não ter ninguém que se preocupasse com ela, que lhe agarrasse nas mãos e dissesse apenas "está tudo bem". Os seus dias eram uma sucessão de horas vazias, com cheiro a café queimado preparado pela criada, a única pessoa que ainda a fazia lembrar que o ser humano existia. Mas não falava com ela, porque achava que já nem sabia falar. Porque os anos que passara fechada naquele quarto de estilo vitoriano, com cortinados verdes bolorentos, a tinham feito esquecer-se do que é falar e de como se fala. Estava sozinha mas sabia que a culpa era sua. Sabia que não tinha dado valor às poucas pessoas que a tinham amado, sabia que se tinha preocupado mais em preencher a sua vida com relações superficiais e efémeras, com a justificação de não precisar de mais nada e de não depender de ninguém. Compreendia, agora, que a vida que antes julgava cheia tinha sido, na realidade, completamente oca.
 
Deitou-se na cama e contemplou as suas mãos que, apesar das rugas, não denunciavam de forma alguma a sua idade, dando-se conta que nunca as utilizara para acariciar alguém. E foi com a companhia solene da solidão que adormeceu, assim, continuando a não perceber o porquê de tudo ter passado tão rápido.
Nesse dia, o café queimado da criada não foi servido porque, simplesmente, já não havia ninguém para o beber.

terça-feira, fevereiro 04, 2014

Less is more


Ultimamente tenho reflectido sobre diversas aspectos da minha vida que gostaria de alterar. Um deles é a questão do apego aos bens materiais, às coisas que, pouco a pouco, vamos acumulando e inevitavelmente se vão transformando em "tralha". Essa "tralha", embora muitas vezes seja constituída por várias pequenas coisas, vai crescendo e acrescentando preocupações na nossa vida. E essa "tralha" é maioritariamente composta por coisas supérfluas, que guardamos apenas porque sim, porque nos dá pena deitar fora ou doar a alguém. É certo que todos temos objectos que nos trazem recordações, que têm um valor sentimental, mas há muitas outras que coleccionamos por nada, que simplesmente vamos acumulando ao longo da vida e colocando a um canto à espera que um dia possamos vir a utilizar (embora o mais provável é esse dia não chegar). Não quero com isto dizer que deitemos fora metade das coisas que temos ou que utilizemos de forma irresponsável o que vamos comprando. O que quero dizer é que chego à conclusão que compramos demasiadas coisas, coisas que não precisamos e que vão acabar por ficar de lado por não serem, de facto, necessárias. Revejo-me completamente nesta situação e isto é algo que me tem incomodado. Compro pequenas (e por vezes não tão pequenas) coisas só porque me apetece comprar, porque não reflicto sobre a real necessidade delas ou porque me deixo levar pelo consumismo desenfreado que atinge a nossa sociedade (e do qual, inevitavelmente, não sou excepção). E agora dou comigo a pensar: será que preciso de cinco cremes para o corpo, outros cinco para a cara, mais não sei quantos para as mãos quando na realidade só utilizo um de cada vez? Será que preciso de dez cadernos, duas canetas da mesma cor e mais uma mão cheia de borrachas? É obvio que estes exemplos são de pequenas coisas, de pouco valor, mas é precisamente nas pequenas coisas que começa a mudança de hábitos. É em pequenos passos que mudamos a nossa percepção daquilo que realmente precisamos. Porquê comprar uma tv nova se a nossa está óptima e, se afinal, não lhe damos assim tanta utilidade? Porquê comprar um iPad se a utilização que lhe vou dar é pouca ou quase nenhuma? 

Ao responder a estas interrogações apercebo-me que, para viver bem e ser feliz não preciso de nada disto. Preciso, sim, de tempo, de tranquilidade, de liberdade mental para me dedicar inteiramente ao que mais gosto e ao que melhor sei fazer. Não são estas coisas que vão fazer de mim uma pessoa melhor. São as experiências, as viagens [que sim, também custam dinheiro], o investimento na nossa formação pessoal, os momentos com a família e amigos [e mesmo sozinhos] que nos fazem ser melhores e nos permitem evoluir. É o tempo para pensar, agir e concretizar, que muitas vezes não temos porque estamos demasiado preocupados em ganhar mais dinheiro para comprar isto ou aquilo, que mais falta nos faz. E é por isto que estou cansada de ter tanta coisa, de pensar demasiado em coisas supérfluas que mais tarde ou mais cedo se vão transformar em tralha. É por isto que, se antes pensava que precisava de trabalhar mais para poder ter mais coisas, agora penso que quero ter menos coisas para poder trabalhar menos e ter mais tempo, mais calma, mais tranquilidade, mais paz de espírito. E é por isto que decidi que vou começar a "destralhar" a minha vida. Com pequenos passos, é certo, mas que estou certa que terão grandes resultados.